“A alma, que se exprime por meio desta língua, é antes de tudo uma alma judaica. Seu desespero é judaico, assim como suas preocupações e os ensinamentos que deles se retira.”
Uma biografia de Franz Kafka
Franz Kafka (1883-1924) é um dos meus autores preferidos, um dos poucos que pretendo conhecer a obra completa. É sempre subjetivo explicar o que realmente chama-nos a atenção para um texto ou escrita. No caso dele, posso dizer que é a capacidade de nos envolver emocionalmente sem demonstrar a intenção de fazê-lo. Não é o sofrimento do personagem em si, não são as frases de reflexão, não é a dúvida, a indiferença, o tempo, o medo, a morte… É o conjunto de tudo. É o cenário abstrato que reflete a triste realidade humana, que toca-nos. Daí creio eu, a fama que suas narrativas têm de serem perturbadoras, inquietantes, claustrofóbicas. Uma vez percebida a angústia escondida nas almas humanas, ainda que por um breve tempo, pelas páginas de uma ficção, as reações não poderiam ser outras.
“Todos os seus livros descrevem os horrores de segredos mal-entendidos e de culpabilidades involuntárias entre os seres. Ele foi um homem e um artista dotado de uma consciência tão aguda que ouvia mesmo onde outros, os surdos, se sentem em segurança.”[1]
Diante de tal maestria, a curiosidade pela figura do autor é inevitável. Após ler dois de seus aclamados romances e alguns contos, li também a sua biografia escrita pelo historiador e crítico de arte Gérard-Georges Lemaire, considerado um especialista nas obras de Kafka.

Esse biógrafo organizou todos os fragmentos – diários, cartas, livros, relatos (principalmente de Max Brod) etc; – ressaltando sempre, a origem judaica de Kafka. É interessante como ele deixa à impressão que ele, ainda que dito ateu na juventude, parece no final da vida ter sido mesmo um sionista [2].
Mas não é só a questão individual – Kafka, o judeu – Lemaire apresenta sua vida infeliz, como um símbolo da inquietante “perda da consciência judaica”, isso é, a condição dos judeus no começo do século XX, quando os mesmos se queriam “alemães”, desejando sem reservas a assimilação social e cultural, renunciando cada vez mais a seus valores ancestrais, à sua história e mesmo a seus fundamentos religiosos. E sua prematura morte, como um verdadeiro presságio dos horrores que esse povo sofreria com a segunda guerra.
O pressentimento de Kafka: “A sinagoga já está abaixo do nível da rua. Mas se irá mais longe. Haverá a tentativa de esmagar a sinagoga, nem que seja aniquilando os próprios judeus.”
Ele coloca então, a “origem” e “dor” judia como a moldura da vida de um homem comum, dotado de uma habilidade incomum, de transferir para o papel suas angústias. Esse é até um ponto importante, a leitura da biografia de Kafka desmistifica a sua pessoa. É normal que os admiradores, não só de escritores, mas de qualquer artista; deslumbrados com a sua arte, comecem a formar uma áurea misteriosa em volta dela. Kafka foi um homem comum. Era dotado de um talento digno de admiração sem dúvida, mas não há nada de especial além disso. Para dizer a verdade, há até o que decepciona um pouco.
Um ressentido brilhante escritor
Não vou entrar em detalhes sobre sua vida aqui, mas vale a pena pontuar algumas coisas. Temos um homem com uma vida familiar difícil, se tratando dos relacionamentos (pois financeiramente eram até bem favorecidos para o contexto da época) principalmente em relação ao pai; o que se dá na infância, prolongando-se na fase adulta; e com os demais relacionamentos, seja amizades ou amorosos, também muito complicados. Um homem que queria escrever: “
“Minha vida no fundo consiste, e consistiu desde sempre, em tentativas de escrever, e na maioria das vezes em tentativas fracassadas.”
E por isso julga os demais trabalhos enfadonhos, insuportáveis. Entretanto, quando pode escrever, faz dessa atividade (incluindo tudo que se relaciona a isso, como as publicações por exemplo) uma verdadeira tortura a si mesmo.
Pelas citações do seu diário e cartas, dá para ter uma ideia de uma pessoa pessimista em relação a tudo. Parece que para Kafka não existia nada de bom a sua volta e quando existia, isso, não fazia parte da realidade; mas era fruto de suas recorrentes ilusões. Inseguro, inconstante, imaturo… ressentido. Ressentido é a palavra que o define para mim após a leitura dessa biografia.
Um ressentido, mas brilhante escritor! Isso é inegável. Os comentários de Lemaire, ainda que rasos, sobre as obras “A metamorfose”, “O processo”, “O veredito”, “O artista da fome” e “A carta ao pai”; só fizeram crescer minha admiração pelo que já li e curiosidade para ler as demais.
Falando da biografia em si e já finalizando, não gostei muito. A história de Kafka é interessante, bem como a reflexão já citada quanto a origem judia do mesmo; porém a escrita de Lemaire é bem cansativa e desconexa as vezes. Não descarto que seja um problema de tradução e não do biógrafo. Entretanto recomendo a leitura, apesar dos pesares, é bom poder contar com esse material em português.
[1] Milena Jesenská citada por Lemaire
[2] Conceito de sionismo http://conceito.de/sionismo#ixzz4nW0lbkVX – Sionismo – Movimento que promove a recuperação da chamada Terra de Israel (ou terra prometida) para o povo judeu. Os sionistas aspiram a que a coletividade judaica se possa instalar nesta região e se autogoverne, tal como acontece no Estado de Israel que foi fundado em 1948. O conceito de sionismo procede de Sion (ou Sião), que é o nome de uma montanha que albergava uma fortaleza nos arredores da cidade de Jerusalém. Com o tempo, Sion passou a ser usado com referência à Terra de Israel e, deste modo, os judeus passaram a conhecer-se como filhos de Sion ou sionistas. Atualmente, a noção diz respeito especificamente ao dito movimento político e ideológico.
Livro: Kafka
Autor: Gérard-Georges Lemaire
Tradução: Julia da Rosa Simões
Editora: L&PM POCKET, 2006
Páginas: 240
Nota: 2,5
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