“É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto mas o que eu digo.”

Perto do Coração Selvagem foi publicado pela primeira vez em dezembro de 1943. O primeiro romance da enigmática autora Clarice Lispector…
Dela eu já tinha lido alguns contos e uma ou duas crônicas, sendo esse porém, o meu contato oficial – em outubro de 2020, quando escrevi inclusive essa resenha -, com a obra da autora. Escolhi intencionalmente sua primeira publicação para assim aproveitar a oportunidade de observar sua evolução na escrita, uma escrita já afirmo aqui de início, que parece que nasceu pronta.
Esse não é um livro fácil de ler. Para mim, um romance psicológico, uma narrativa em fluxo de consciência, uma absurda subjetividade. É o tipo de livro que é uma verdadeira experiência. O leitor pode facilmente perder-se na narrativa, ou em si mesmo, ou os dois. É intenso.
Perto do Coração Selvagem é dividido em duas partes. É contada a história de Joana, isso é, da infância à vida adulta; durante todo o enredo, o que se passa do lado de dentro dessa personagem: seus confusos pensamentos, sentimentos, reflexões… a bagunça que é o interior de qualquer ser humano. E tudo na maior parte do tempo em terceira pessoa. Uma das narrativas em terceira pessoa que mais tenha me dado a sensação de intimidade, de aproximação com o personagem, que eu tenha lido.
Os capítulos da primeira parte oscilam entre a infância e a vida adulta de Joana. A infância: a protagonista é órfã de mãe e vive poucos anos com o pai que também morre. A menina vai morar com uma tia e depois o triste destino dela é o internato. A vida adulta: o casamento com Otávio que era noivo de Lídia antes de escolher Joana como esposa.
Na segunda parte, temos somente a vida adulta de Joana. O impacto do que foi construído na primeira parte: a revelação nua de sua personalidade extremamente forte, selvagem… Confundindo qualquer leitor que poderia não esperar tanto de uma mulher que passou o que passou. Li comentários na internet que interpretam Joana como amoral, o que também pode ser. De qualquer forma, o que acontece é que na leitura vamos acompanhando essa bomba chamada Joana cercada pela realidade da vida, cercada pelas pessoas como elas são, ganhando cada vez mais velocidade em seus conflitos e então, de repente se quebrar.
E esse livro é isso. Uma roda gigante de emoções. É estranho também. É cru, sem floreios.
Eu não sei muita coisa sobre a vida da Clarice e penso que essa é uma lacuna enorme, uma muralha que me impede de entender melhor esse livro. Pois penso que seja impossível que nesse intenso fluxo de consciência não seja possível pescar a própria autora ali dentro. Sei que sim. Clarice está em Joana, o quanto é que eu não sei precisar. E seguindo essa linha, por Joana, Clarice me pareceu mais desiludida, ou mais convencida da realidade da natureza humana que a maioria de nós. Ela me pareceu enxergar o problema do pecado e admitir também a rebeldia humana contra Deus.
Sim, algumas vezes tive essa experiência. De encontrar na literatura, em alguns autores “não religiosos”, uma lucidez revoltada e triste. Eles enxergam a própria depravação. Eles não negam sentir a culpa. Eles sabem da necessidade de redenção. Porém, numa revolta que pode parecer passiva, mas sempre determinada e melancólica, fecham os olhos, rejeitam a Deus, suavizam a culpa, julgam encontrar redenção em si mesmos.
Toda vez que me deparo com isso, não deixo de me admirar de certa forma; pois muitas pessoas não encaram essa verdade e eu mesmo durante algum tempo não tinha essa clareza. Repito o que já escrevi por aqui mais de uma vez: enxergar a própria perdição sem conseguir ver um meio, o único meio de redenção – O Caminho, A Verdade e A Vida – é desesperador. Justamente por isso, para mim esse livro foi um dos mais angustiantes que já li.
“Mas não queria orar, repetiu-se mais uma vez fracamente. Não queria porque sabia que esse seria o remédio…”
“Não era culpado – ou era? de quê? sabia que sim, porém continuou com o pensamento – não era culpado, mas como gostaria de receber a absolvição.”
+INFO Livro: Perto do coração selvagem | Autora: Clarice Lispector (1920-1977 ) | Publicado pela primeira vez em: 1943 | Rocco, 1998 | Páginas: 204 | Compre: Amazon, Estante Virtual
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Realmente não é uma leitura fácil! Minha primeira reação foi não gostar, depois fui processando a experiência e pude apreciar o espírito criativo da Clarice Lispector. Essa análise religiosa do livro foi muito boa . A solução para a angústia existencial da Joana – e de qualquer um de nós – só pode ser Jesus ! Parabéns, Kelly! Gosto muito das tuas resenhas 😀
Ler Clarice é estranho, “difícil” como concordamos. Quanto cristã, amo esse desafio.
Muito obrigada pela leitura e palavras. ^^